Todos no mesmo barco
- Projeto UniVersus
- 29 de jun. de 2024
- 5 min de leitura

Bali é conhecido por ter mais turistas do que locais, mas ao fim de 1 mês a explorar a Indonésia, encontrámo-los… Num ferry que liga Labuan Bajo a Bali em 27h. Em centenas de locais, vimos apenas 3 turistas para além de nós.
Mais de 1h antes de o ferry partir juntam-se centenas de locais, com malas, sacos, e muitos deles até com sacões que transportavam vários quilos de arroz… Alguns embarcavam, outros apenas viam embarcar.… Juntamo-nos a este aglomerado de pessoas que nos olham com um misto de estranheza, mas principalmente entusiasmo.
À entrada no ferry, um membro da tripulação começa a falar-nos em indonésio, depois do nosso (agora já confiante) “selamat pagi” (bom-dia). Durante a viagem, muitos presumiram que falávamos a língua, talvez o local em que estávamos os fizesse pensar isso. Somos guiados até às nossas “camas”, número 198 e 197, cabine 1, deck 3. São camas sem fim. O colchão diz “Gratis”, palavra partilhada entre o português e o indonésio. Lemos nas críticas destes ferries que algumas pessoas faziam o seu negócio ao entrarem muito rápido no barco, recolherem todos os colchões e pedirem depois dinheiro por eles. Se é verdade que ninguém duvida do espírito empreendedor desta população, é também verdade que ficámos muito satisfeitos por ver que as coisas já não eram desta forma.
Temos um altifalante mesmo à frente das nossas camas. Depois de umas palavras em indonésio, e uma grande apitadela do barco, lá vamos nós, rumo a Bali. O mesmo altifalante não demorou a informar-nos de um conjunto de informações, para nós impercetíveis, seguidas de um momento de oração em árabe para os passageiros muçulmanos.
Subimos para o convés e sentamo-nos a escrever postais. São incontáveis as pessoas que vêm ter connosco - crianças, jovens e adultos juntam-se para falar um pouco e claro tirar fotografias. Sentimos um pouco do que é ser famoso… se por um lado é maravilhoso deixar as pessoas felizes só com um sorriso, “hello” ou mesmo a nossa presença, ao mesmo tempo, não deixa de ser estranho, principalmente sendo a única coisa que nos distingue à partida a parte do mundo em que nascemos. Independentemente, sortudos nós que somos recebidos desta forma e que, sem pedir convite temos a possibilidade de entrar nesta cultura.
A nossa sorte continua, ao explorarmos o barco acabamos por tropeçar numa zona interdita onde está a tripulação a jogar ping-pong. Sim, o barco era grande o suficiente para ter um cantinho a que a tripulação chamava de “Sport-Center”. Vestidos a rigor, convidam-nos a jogar, e acabamos a passar as primeiras horas desta jornada da melhor forma possível.


O tempo vai passando e decidimos sair uma vez mais “à rua” para apanhar os últimos raios de sol. Encontramo-nos nas traseiras do barco, numa espécie de café e, de olhos postos no horizonte, absorvemos o pôr-do-sol, cujas cores pintam o céu num laranja vibrante cuja beleza quase parece ofuscar-nos apenas a nós. Talvez eles já estejam habituados. Começa a escurecer, e as nuvens misturam-se com o fumo de um vulcão ativo pelo qual estamos a passar. O estômago dá as horas. No nosso deck é possível encontrar uma pequena loja de conveniência onde podemos comprar sumo e noodles. Aberta a embalagem, o vendedor prepara-os para nós, colocando os condimentos e água quente. Esta foi mais uma conversa, desta vez totalmente tida em indonésio. Felizmente, a comida é grande parte do nosso vocabulário. Mais confortáveis, encontramo-nos agora nos nossos colchões. Por esta hora, já a maior parte das pessoas se juntou em pequenos grupos que conversam e comem em conjunto. Várias linhas musicais entrelaçam-se, uma vez que cada pessoa ou grupo coloca a sua música em voz alta. Ouve-se mais uma vez a oração a sair do microfone, é hora de rezar para os passageiros muçulmanos.

Levanto-me, e dirijo-me calmamente à casa de banho, sem imaginar que esta jornada iria durar quase duas horas. Estou prestes a entrar quando se ouve um já familiar – “Hey, where you from?”. A porta da casa de banho estava mesmo ali, mas sem que desse conta tinha agora sido sugado para uma conversa com 3 pessoas, mais 3 a gravar a interação. Aqui, falava-se de tudo: religião, diferenças culturais, festas de Bali, perceção pública sobre os turistas e destes sobre a Indonésia. Este grupo composto por idades diferentes, um rapaz de 16, um rapaz de 26, e um senhor um pouco mais velho (vamos dizer com 36 pela beleza dos números) acolheu-me com tal cumplicidade que, embora eles me parecessem familiares ou amigos de longa data, a revelação de que se tinham acabado de conhecer acabou por me soar natural. Uma hora passou, e já sem câmaras a gravar-nos, encontramo-nos agora de forma um pouco mais intimista a conversar, sentados nas suas camas. Passaram agora quase duas horas, e a noite chama por todos. Na hora de nos separarmos, uns vão jantar e os outros, como eu, tentar descansar um pouco no meu próprio colchão, duas filas à frente. Passo pela casa de banho e ao chegar ao colchão fecho os olhos, enquanto continuo a ouvir a quantidade de vida que existe no deck, de todos aqueles que não parecem ainda ter sono.
Seria de esperar que este burburinho cessasse com o passar do tempo, mas lembro-me de pensar com muita força, à 1:30h da manhã: “são diferenças culturais”, para acalmar a parte de mim já frustrada por querer dormir.
Vou até ao convés, o escuro da noite é tão denso que não se vê absolutamente nada 1 metro à frente do barco. Pareço ser a única no convés, pelo menos até um grupo de 3 jovens chegar e, apesar de todos os bancos estarem disponíveis, se sentar no mesmo banco que eu, apertadinhos. Trocamos algumas palavras e eles seguem caminho. A escuridão e ausência contrastam com o espírito vibrante dos dormitórios. Inalando toda esta calmaria, respiro fundo, e volto a descer três pisos na esperança de me deixar cair num sono que não seja atropelado pela música e sons do telemóvel.
De manhã, um dos locais com quem conversámos diz-nos que o barco dá refeições. E se conhecem os indonésios já adivinham que para o pequeno-almoço, almoço e jantar foi servido arroz. Eu gosto muito de arroz, não me queixo… mas, para nós, a prioridade estava no café e em terminar o pão, a geleia e a manteiga de amendoim que carregávamos já connosco. O arroz, bem, esse nunca está longe, tendo ficado para o almoço. Movimentamo-nos pelo barco e damos conta de que também nós fomos envolvidos por este ambiente comunitário que se faz sentir. Afinal, foram 27h recheadas de encontros e trocas culturais onde entramos como estranhos e acordamos num ambiente confortável e familiar. Ao passearmos uma última vez pelo barco, o estranho e desconhecido davam agora lugar aos “bons dias” e “olás” sorridentes de todos aqueles com quem já tínhamos partilhado parte daquele dia. Vimos, mais uma vez, reforçada a crença de que as diferenças que vemos entre nós frequentemente se esbatem através do contacto e uma ajudinha de um objetivo comum. Afinal, estamos todos no mesmo barco…

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